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terça-feira, 22 de outubro de 2024

Saudades, parte II

Antes de ler essa publicação, recomendo ler a primeira parte: Saudades

Nos últimos tempos, tenho refletido muito sobre conexões humanas. No meu post anterior, publicado há 6 anos, compartilhei como era difícil lidar com o balanço emocional em um contexto de distanciamento de entes queridos durante meu estágio de doutorado na Columbia University.

Hoje, gostaria de retomar esse tema sob uma nova perspectiva. Faz quase 3 meses que voltei para a Columbia University, desta vez para um estágio de pós-doutorado no mesmo grupo em que estive anteriormente. Curiosamente, minha experiência, em termos de balanço emocional, tem sido muito diferente. Vou explicar melhor, abordando três pontos principais:

1. Maturidade e experiência
O primeiro ponto a considerar é que, quando escrevi o post anterior, eu tinha 27 anos e nunca havia me distanciado tanto e por tanto tempo da família e dos amigos. Hoje, aos 34 anos, conheço melhor a mim mesmo e, principalmente, tenho mais experiência em morar fora.

2. Companhia
Na minha primeira experiência, vim totalmente sozinho, e todas as conexões que estabeleci foram construídas do zero. Agora, estou acompanhado por minha esposa e já conheço outras pessoas em Nova York.

3. Mesmo lugar, tempo diferente
Esse é o ponto principal que me levou a refletir novamente sobre a importância das conexões humanas. Na minha estadia anterior, desenvolvi amizades muito fortes, especialmente porque o grupo de pesquisa era formado por muitos estrangeiros em situações semelhantes à minha. Hoje, após 5 ou 6 anos, todos os amigos que eram doutorandos regulares na Columbia já se graduaram e deixaram o grupo.

Com esses três pontos, é possível compreender melhor o contexto. Sinto saudades da família e dos amigos? Sim, mas hoje sei lidar melhor com isso, e Nova York não é mais um território desconhecido e potencialmente amedrontador. Por um lado, como deve ser fácil racionalizar, isso é ótimo. No entanto, há um aspecto menos evidente que gera um sentimento constante de saudade: estar em um ambiente repleto de memórias especiais com amigos que fiz aqui, mas não tê-los mais comigo presencialmente.

Para ilustrar, sempre que vou para a universidade, passo por um restaurante onde costumava jantar com meu querido amigo Chenghua. Ao chegar à Columbia, passo pelo portão onde me despedi da Lou Ge, quando ela estava deixando Nova York. Dentro da universidade, há inúmeras memórias, como os encontros aleatórios com a Yixi nas escadas e corredores do prédio de engenharia (ela era de outro grupo e não a encontrava no laboratório), ou as vezes em que almoçávamos todos juntos no prédio da biologia. No laboratório, essa sensação é ainda mais forte, pois era um dos lugares que mais compartilhava com meus amigos, e onde há mais vestígios pessoais deixados por eles — como o nome da Minxi e da Catherine em gavetas, frascos e equipamentos.

Nesse ponto, gostaria de ressaltar que, especialmente nas primeiras semanas, é estranho estar cercado por tantos sinais dos amigos, como se a qualquer momento um deles pudesse entrar no laboratório, mas nunca encontrá-los. Isso, de certa forma, gera uma saudade constante. Embora agora pareça um pouco óbvio, eu não previ esse lado meio perverso de ter memórias tão especiais aqui, que acaba gerando uma sensação de solidão.

É até um pouco irônico: desta vez estou mais preparado para lidar com a saudade dos entes queridos que deixei no Brasil, mas não estava pronto para enfrentar a saudade que encontrei aqui mesmo.

Isso me levou a refletir bastante sobre a importância das conexões humanas. Embora nossa individualidade seja algo valioso, não existimos isoladamente. Uma parte significativa de nossas vidas é moldada pelos tipos de conexões que formamos com outras pessoas ao longo do tempo.

Recentemente, estive lendo um livro sobre filosofia que ganhei de um amigo querido, Aprender a Viver: Filosofia para os Novos Tempos, de Luc Ferry. O autor é um filósofo que rejeita ferrenhamente a ideia de religião como uma forma de filosofia. Ainda assim Luc Ferry reconhece o papel dominante que o cristianismo teve sobre a filosofia ocidental e debate como ocorreu a ascensão do cristianismo e seu estabelecimento como a principal forma de pensar a salvação humana no ocidente por tantos séculos. O principal ponto é que a resposta do cristianismo à morte, ao contrário de correntes filosóficas dominantes até então, oferecia a possibilidade de reatar as conexões com entes queridos ao acessar o paraíso, em contraste com a ideia de retornar ao caos despersonalizado do cosmos natural sem uma alma a que se agarrar.

Com a ascensão da ciência, o cristianismo começou a perder força, enquanto outras correntes filosóficas que enfatizam o valor intrínseco do indivíduo ou do material em relação ao divino ganharam destaque. No entanto, mesmo hoje, essa resposta cristã oferece grande conforto, pois nos permite acreditar que as relações que desenvolvemos ao longo da vida não se perderão, mas, na realidade, persistirão eternamente, ao menos para aqueles que fizeram por merecer. O poder conquistado pelo cristianismo, fundamentado nessa ideia de salvação divina, demonstra claramente o valor que damos para os dos laços humanos. Mas por criar essas conexões com outras pessoas é tão valioso?

Antes de entrar mais a fundo nessa questão, gostaria de fazer um breve preâmbulo sobre as reflexões de um material que se relaciona com isso: a série de jogos Persona, especificamente Persona 4 Golden, lançado em 2012 para o PlayStation Vita. Eu joguei esse jogo ao longo do ano de 2018. A série Persona explora, de forma bastante aprofundada, a psicologia junguiana, apresentando os conceitos de Personas e Sombras.

De forma resumida, o objetivo principal do jogo é desenvolver sua persona, uma espécie de espírito que simboliza a personalidade que cada pessoa cria para lidar com o mundo em seu entorno, combatendo sombras e salvando outros personagens. As sombras representam características que as pessoas se recusam a aceitar como parte de sua personalidade, permanecendo aprisionadas e reprimidas em seu subconsciente. Quanto mais se rejeita uma sombra, mais ela se fortalece, até que pode assumir o controle da pessoa. Perceba que se propõe uma metáfora interessante para expressar os conceitos junguianos e nossa relação com nossos sentimentos.

Com isso em mente, chegamos aos dois pontos mais importantes que quero desenvolver com base no capítulo 4 da franquia: 1) a criação da persona; e 2) o fortalecimento da persona.

Criação da Persona: Cada protagonista da história precisa, antes de tudo, criar e assimilar sua persona. Nesse processo, o personagem deve confrontar sua própria sombra. No entanto, como mencionei antes, rejeitar a sombra e lutar contra ela apenas a fortalece. A persona só pode ser criada quando o personagem decide aceitar a sombra como parte de si, assimilando-a e tornando sua identidade mais completa. Acho fascinante como esse conceito é lindamente ilustrado no jogo. Caso alguém tenha curiosidade, pode conferir um exemplo aqui (spoilers): https://youtu.be/jNNYrSO6oTU?si=3YCa2w5DLlfOCQvh

Esse conceito de aceitação da sombra, inclusive, pode ser relacionado a uma frase que é repetida em todos os jogos da série Persona:

我は汝、汝は我
"I am thou, thou art I."
"Eu sou tu, tu es eu."

Fortalecimento da Persona: Após a criação da persona, o personagem precisa fortalecê-la. Esse processo se dá por meio da experiência adquirida em batalhas contra sombras (uma mecânica clássica de RPGs) e, de forma mais interessante para o que quero abordar, através da criação de vínculos afetivos e do fortalecimento desses vínculos com outros personagens — chamados de social links ou confidentes no jogo. Cada personagem no jogo representa um aspecto psicológico/emocional, ou um arquétipo, simbolizado pelas cartas do tarot. Alguns exemplos incluem:

Magician (O Mago): Relacionado à habilidade e ação, muitas vezes associado a personagens enérgicos ou impulsivos.
Priestess (A Sacerdotisa): Simboliza sabedoria, introspecção e mistério.
Empress (A Imperatriz): Representa a maternidade, criação e abundância.
Emperor (O Imperador): Relacionado à autoridade, poder e liderança.
Lovers (Os Amantes): Simboliza relacionamentos, escolhas e harmonia.

Arquétipos dos confidentes representados por cartas de Tarot


Perceba que a personalidade só pode ser formada plenamente quando se compreende que sua existência depende do reconhecimento e aceitação dos próprios defeitos e características indesejáveis. Esses aspectos, muitas vezes ignorados, também fazem parte da identidade. E essa personalidade se fortalece ao criar vínculos afetivos. Ou seja, a individualidade de uma pessoa só atinge sua plenitude quando se conecta com outras individualidades. Cada pessoa permanece uma persona independente, mas se fortalece mutuamente ao compartilhar experiências. Sensacional, não?

Enfim, era esse o ponto ao qual eu queria chegar. Em minha experiência pessoal, os laços que criei com os amigos nos EUA tornaram-se uma parte essencial da minha existência. Portanto, embora hoje eu seja mais maduro e tenha uma compreensão mais profunda da minha individualidade, a ausência dessas conexões gera um vácuo na estrutura sobre a qual essa individualidade se desenvolveu. Isso é natural e faz parte da vida. Amigos vêm e vão, laços se formam e se desfazem o tempo todo. Mas as memórias permanecem, e, às vezes, essas memórias são tão significativas que se entrelaçam na própria essência do ambiente ao nosso redor. Assim, o espaço físico ressoa com essas lembranças, e elas trazem à tona as conexões afetivas que já não estão mais presentes. A ausência dessas conexões, sem qualquer expectativa de retorno, causa desconforto para a individualidade, o que entendemos como saudade — e é aqui que chego ao ponto inicial desta reflexão.

Acho que a importância de criar essas conexões já está bastante clara. Mas uma questão que fica para reflexão é: até que ponto vale a pena criar memórias com base em conexões que sabemos que, com o tempo, irão se enfraquecer ou desaparecer? E se essas memórias ou os próprios laços tiverem significados diferentes para cada lado da conexão?

Para refletir sobre as perguntas que levantei, gostaria de propor um pequeno experimento. Há algum tempo, ouvi a seguinte frase (ou algo parecido): "temos o hábito de tirar fotos de tudo aquilo que valorizamos a ponto de temermos perder um dia". Com isso em mente, vamos analisar quais tipos de imagens predominam em sua galeria de fotos ou nas redes sociais. No caso das redes sociais, é importante considerar que há um segundo filtro: o que de fato queremos mostrar às pessoas.

Se olharmos nas redes sociais, encontraremos álbuns cheios de fotos de viagens, eventos, encontros com amigos, mas também de objetos materiais, fotos de si mesmo, de momentos do cotidiano, de itens de luxo, de animais de estimação, e assim por diante. Assumindo a premissa da frase acima, com algumas limitações, podemos tentar inferir o que cada pessoa valoriza mais e teme perder.

Quando decidi revisar meu Instagram com essa perspectiva, tive uma surpresa. Minhas fotos são basicamente sobre dois temas: momentos que me marcaram de alguma forma e encontros com pessoas próximas (você pode checar lá para tirar suas próprias conclusões). Nunca fiz isso conscientemente, mas parece mostrar a importância que memórias e conexões têm na minha vida.

Refletindo sobre isso, eu diria, de maneira ainda inicial, que isso reflete como essas experiências compõem nossa individualidade mais íntima, mesmo quando estão ligadas a outras pessoas. À primeira vista, isso parece um paradoxo: nosso ego/identidade mais interno e individual é, ao menos parcialmente, um produto de conexões com personas exteriores e experiências coletivas. Mas não é um paradoxo! E isso responde, de uma só vez, as duas perguntas que levantei anteriormente.

O ato de criar laços, mesmo com a consciência de que eles possam enfraquecer ou desaparecer com o tempo, é essencial para o fortalecimento de nossa identidade. A memória dessas conexões, mesmo que diferente para cada pessoa, molda quem somos e, por isso, vale a pena continuar criando essas relações, independentemente de sua durabilidade.

As memórias que criamos com nossos laços afetivos possuem um significado compartilhado, mas também um significado único e individual. As marcas, positivas ou negativas, que essas memórias criam em nossa identidade mais íntima não são alteradas pela percepção das outras pessoas. Vou tentar dar um exemplo mais prático: você criou uma memória importante com uma pessoa especial, que te marcou a ponto de, de alguma forma, moldar uma parte da sua identidade, e essa memória continua ressoando esse significado. Vamos dizer, você está sempre sorrido ao lembrar das emoções que sentiu naquele dia. Nada externo deveria interferir nessa experiência mais íntima. Por exemplo, digamos que você tem o poder de entrar na mente da pessoa com quem compartilhou tal experiência e percebe que a mesma memória não foi marcante e que não há nenhum significado especial para ela. Talvez você fique inclinado a pensar que tudo não passou de um engano e que deveria ressignificar totalmente o sentimento ligado àquela recordação e como ele se conecta com sua identidade. Eu diria que você não deveria se precipitar.

O significado ou valor compartilhado daquela memória pode até ser ressignificado, mas o valor individual de tal experiência deve permanecer, pois o que foi construído em seu íntimo seguirá para sempre. Se foi um momento feliz e agradável, que fortaleceu suas ferramentas para lidar com o mundo ao seu redor, por que isso deveria ser desconstruído pela percepção individual de outra pessoa?

Portanto, independentemente de como as conexões responsáveis pelas memórias estarão no futuro ou de quanto a percepção do outro lado da conexão se alinha com a sua visão, tal memória ainda tem um valor íntimo intrínseco que é imutável. Nesse sentido, muitas vezes a dor que sentimos é por acreditarmos que há uma inconsistência entre o valor mais íntimo e o valor compartilhado ou exterior, quando, no final das contas, são coisas essencialmente diferentes.

Voltando para questões filosóficas, talvez isso ecoe o que a filosofia existencialista diria sobre cada indivíduo ser responsável por criar seus próprios significados e valores. Mas não sei ao certo, como disse, são apenas reflexões rudimentares.

Daily Post

As I mentioned, part of my reflections on connections, memories, and philosophy are linked to a book I read recently. I'm very glad I have started reading as a hobby again in my daily routine. I have been trying to diversify the genres and subjects of the books I read as much as possible. This year, I have read around 12 books, including not only philosophy but also fantasy, sci-fi, biography, science, and politics. Interestingly, the last book I read, The naked sun, was written by Isaac Asimov, who earned his master's and PhD at Columbia University. Furthermore, this book imagines a world in which a very advanced human society, built upon sophisticated robot technology, resulted in disregarding the value of human connections. After finishing Asimov's book I started the second book in "The Three-Body Problem" series, a Chinese book recommended by my dear sister Minxi in 2018 - these books were in a list I created before even know I would be at Columbia University this year. Coincidence? 

Book "The Naked Sun", by Isaac Asimov - Columbia University in the background


Another interesting fact related to this publication is that while I was playing Persona 4 Golden in 2018, I started playing Persona 5 Royal this year. I’m still at the very beginning as I write this, but all the main themes of the Persona series are present. So many cycles in our lives, right?

Post Scriptum

Depois de muito trabalho organizando o laboratório e montando o experimento, tive uma semana bastante agradável na Columbia. Foi a primeira semana de operação dos meus reatores, sem grandes problemas. Também tive uma reunião bastante positiva com o supervisor, que apontou para perspectivas boas. Mas o ponto mais alto, e que está relacionado de muitas formas ao conteúdo principal da publicação, foi a visita da Minxi, minha irmãzinha do coração, a NY. Passei a semana toda entusiasmado com a possibilidade de revê-la. Ela passou uma sexta-feira a tarde no laboratório apresentando seu projeto de pós-doutorado atual e dando alguma mentoria para os alunos atuais do grupo da Columbia. Fico super feliz e orgulhoso de ver o progresso dela na carreira acadêmica. No sábado, aproveitamos a tarde para matar a saudade, passeando e conversando durante uma agradável tarde de outono no Central Park. vou deixar fotos desse momento registradas aqui na publicação, embora seja um dia que vou sempre guardar com muito carinho em meu coração. Bom, já deve estar bastante claro como isso se conecta com o conteúdo principal da publicação. Boa semana a todos!

Uma tarde agradável com minha irmãzinha do coração no Central Park


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